24 de jun. de 2008

Desconstruindo o racismo: a polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista













A "polêmica musical" entre Noel Rosa e Wilson Batista ocorrida na década de 1930 é um ótimo caso para uma atividade pedagógica de conscientização das relações raciais no Brasil.
Observada em seu contexto a polêmica é uma espécie de representação do conflito entre dois mundos que se opõem e se complementam numa época em que todas as energias da sociedade estão em ebulição.
É o período do Estado Novo nos anos 30 em que o país se encontra em acelerada urbanização e industrialização e as relações entre negros e brancos ganham novos contornos.

Noel Rosa e Wison Batista tem em comum o gosto pelo samba, a musicalidade e o talento, além de viverem cada um a seu modo, o "mundo do samba". É um período em que o sambista já não corre tanto da polícia e há um forte sentimento nacionalista no ar. Mas, especialmente para o negro é um ambiente perigoso, onde ele é visto como ameaça e que para ter sua identidade respeitada é preciso negociá-la, seja na malandragem, seja na valentia.

Foi neste cenário que nasceu a rivalidade entre os dois sambista que protagonizam em alto estilo seus papéis de mocinho e vilão neste episódio das relações raciais no Brasil.
De um lado, Wilson Batista representa o malandro, negro, suburbano, pobre e talentoso. Nascido em Campos em 1913 compôs o primeiro samba aos 16 anos, trabalhava nos bastidores do teatro de revista, morava na Lapa e frequentava seus cabarés, era o boêmio pobre.
De outro lado, Noel Rosa representa o boêmio 'boa vida', frequentador do Café Nice onde se reuniam os "doutores" e morador de um bairro tradicional típico de classe média e foi estudante de medicina.
A "rixa" começou depois que Wilson Batista fez um samba exaltando a malandragem, "Lenço no pescoço" (2) e Noel compôs o samba "Rapaz Folgado" (3).
O duelo teve mais alguns sambas provocativos entre os dois e Wilson pouco sutil, apelou para exaltar o defeito físico de Noel, a polêmica terminou, ficaram amigos e gravaram juntos.

Caetano Veloso fez há pouco uma série de três shows chamado "Ordem em Progresso" no Vivo Rio (RJ) num deles conforme consta em sua página: "Caetano dá aula sobre Feitiço da Vila, composição de Noel Rosa: o que sua letra pode nos ensinar sobre as relações raciais/culturais no Brasil?"
Caetano interpreta a letra do samba "Feitiço da Vila" dando ênfase em algumas palavras e versos, faz insinuações e pequenos comentários que revelam alguns significados racistas na resposta de Noel Rosa a Wilson Batista.
A descontrução do racismo está exemplificada na "aula" de Caetano que oferece um excelente material de referência para que possamos fazer uma análise das relações raciais no Brasil, observando o seu contexto histórico, social e cultural o que atende a demanda por referências para o cumprimento da lei 11.645/08.

Veja o vídeo:


Feitiço da Vila De: Noel Rosa e Vadico

Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos,
Do arvoredo e faz a lua,
Nascer mais cedo.

Lá, em Vila Isabel,
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café,
Minas dá leite,
E a Vila Isabel dá samba.

A vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem

Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente

O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
"Sol, pelo amor de Deus,
não vem agora
que as morenas
vão logo embora

Eu sei tudo o que faço
sei por onde passo
paixao nao me aniquila
Mas, tenho que dizer,
modéstia à parte,
meus senhores,
Eu sou da Vila!

Lenço no Pescoço Composição: Wílson Batista

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

E eles tocam
E você canta
E eu não dou


Rapaz Folgado De: Noel Rosa

Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha

Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado

Este vídeo oferece um perfil do bairro Vila Isabel.





Agradecimento: Ras Adauto
Fontes consultadas:
Sobre o conceiro de Descontrução (J.Derrida) ver artigo em:
http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/espiral/tecno9.htm
Artigo s/ a Polêmica: Noel Rosa e Wilson Batista
http://www.brasilcultura.com.br/conteudo.php?id=652&menu=92&sub=678
Artigo de Luis Nacif: http://www.acessa.com/gramsci/?id=418&page=visualizar
Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira http://www.dicionariompb.com.br/default.asp

17 de jun. de 2008

Lei 11.645: reinvenção da fábula das três raças? (2)

Fotos de crianças da Amazônia na página do governo do estado. Ignoradas em sua identidade são apenas índias. Sem respeito a sua cultura original e seu meio natural serão num futuro próximo "índios desaldeados" e trabalho braçal barato numa fazenda-industrial do século 21 com dinheiro público ou capital internacional.
Quando falamos genericamente em história do negro, do índio, estamos muitas vezes nivelando e naturalizando uma heterogeneidade que possui exatamente nisto a sua riqueza, existem diferenças importantes de etnias que precisam ser percebidas para desmistificarmos as tais noções generalizadoras e valorizarmos o que é específico e original.

Creio que este seja um dos maiores desafios à implementação da lei 11.645/08: situarmos num contexto histórico e cultural a especificidade étnica dos povos negros e indígenas no Brasil sem nivelarmos por baixo suas diferenças importantes. Acredito também que isto será uma tarefa a ser completada por muitas gerações que irão que reescrever suas próprias histórias, uma tarefa que dependerá no futuro do que aprenderão hoje com seus professores.  

E para isso serão necessários um contínuo processo de formação para todos re-aprendermos a especificidade de cada povo componente da nação brasileira. E isto certamente será uma longa tarefa na qual teremos de confrontar o que aprendemos de história, literatura, artes, filosofia e religião sobre os povos europeus na base de uma formação eurocêntrica com esta nova etapa do ensino brasileiro.

O pressuposto da "fábula das três raças" é a sua hierarquia triangular com os brancos no topo e na base negros e indígenas. Há ainda, outra imagem de uma linha vertical colocando os brancos no topo, os negros numa faixa intermédiária e os índios na base de uma suposta evolução racial e social. Existindo em ambas as linhas intermediárias, os tipo mestiços: mulato, cabloco, etc. que nesta lógica numa escala inversa, estariam "melhorando a raça" através do embranquecimento, é a lógica da mestiçagem.

As "raças humanas" no sentido biológico não se comprovam e sua noção neste campo é funcional de alguma tecnologia aplicada sobre algumas características fenotípicas, genéticas ou culturais dos grupos. Estas características e diferenças não significam nenhuma hierarquia evolutiva da raça humana como raças superiores ou inferiores.

A desmistificação do conceito de raça foi necessária no momento em que se precisava provar que não haviam raças superiores ou inferiores e teve seu desfecho histórico com o fim do colonialismo e do apartheid racial. Na atualidade, o termo raça foi redefinido politicamente pelos grupos discriminados com um sentido neutro relativo a qualquer hierarquia natural, mas tornado positivo em relação às diferenças étnicas e culturais. Serão estas difereças étnicas e as fusões culturais que vão resultar numa definição positiva de raça como um recurso político, agora resignificada pelos grupos oprimidos para sua defesa e para a conquista de direitos que eram negados e justificados pela hierarquia da definição negativa de raça. Por isto não basta a simples negação do uso do termo raça, que deve ser criticado na sua origem, mas que temos que afirmar positivamente nas suas diferenças através de valores históricos e culturais próprios da identidade dos povos que as constituem segundo esta redefinição política do termo. Não vejo esta questão como um dilema, porém não se deve simplesmente negá-la e produzir um equívoco ou um lapso, afinal de quem falamos quando nos referimos ao branco, ao negro e ao indígena senão sob um enfoque crítico de uma categoria política de raça, de raça social.

Vale comparar com os EUA o modelo racial brasileiro. Nos EUA o modelo é baseado na regra de que basta uma 'gota de sangue' negro ou índio para que o indivíduo seja considerado negro ou índio. No Brasil, ao contrário, a mistura entre brancos, negros ou índios vai valorizar um suposto embranquecimento racial que seria não só da cor da pele mas também da 'alma' em favor da cultura branca, do eurocentrismo. Este é o efeito ideológico que cria o "racismo à brasileira" uma "ideologia abrangente" capaz de envolver o povo, os intelectuais e os políticos em torno da mestiçagem ... "e se utilizando "branco", "negro" e "índio" como unidades básicas através das quais se realiza a exploração ou a redenção das massas". Aqui o negro ou o índio se diluindo na sociedade é um efeito positivo da mestiçagem nos EUA é um efeito negativo e indesejado.

13 de jun. de 2008

Lei 11.645/08: reinvenção da fábula das três raças? (1)

Desde a promulgação da lei 11.645/08 que acrescenta (e corrige) a lei 11.639/03 temos instituído no sistema educacional brasileiro a obrigatoriedade do ensino da história e cultura do negro - África e Afro-Brasil - e da história do indígena brasileiro (centenas de etnias). A lei 11.645 é verdadeiramente uma correção da lei 10.639 como destacou a coordenadora de diversidade da SEEDUC-RJ em recente seminário no Cefet-RJ Professora Mariléia Santiago (SEEDUC-RJ) com as populações indígenas nacionais que não tiveram reconhecidas na lei 10.639/03 sua história e suas culturas.

Foi neste contexto em que me lembrei da "fábula das tês raças" a partir da leitura crítica feita pelo antropólogo Roberto da Matta (Relativizando - Uma Introdução à Antropologia Social - Ed.Vozes)*.

Depois de alguma dificuldade em ter em mãos este livro resolvi antecipar nestas postagens um possível texto final com estas notas de leitura que irei postando. Caso surjam observações, acréscimos, etc. suficientes a formar um trabalho coletivo, deixo a opção de deslocamento para uma ferramenta do google que permite um ambiente mais adequado para textos de trabalho colaborativo.

Destaco do autor sua observação teórica a respeito das "ideologias abrangentes" que impregnam uma formação social de alto a baixo, e que ele se refere como camadas sociais, assim como podemos considerá-las classes sociais. 

A idéia das "raças formadoras do Brasil" é uma tradição do pensamento antropológico e do pensamento social brasileiro que diversos autores mais à esquerda ou à direita alinharam seu pensamento com este "princípio antropológico". Esta noção pressupunha muitas vezes ainda um estereótipo que acreditava serem características do "índio a preguiça, do negro a melancolia e do português, a estupidez e a ganância". Sendo estas características que justificariam o "atraso econômico-social brasileiro", assim como a necessidade do autoritarismo (e do paternalismo) e a indigência cultural como causadoras de nossa inata uma 'degeneração social'.

Se estas concepções deste pensamento sobre o caráter das raças no Brasil parecem hoje absurdas devemos nos lembrar que sua vigência continua presente em muitas noções que justificam a maneira desigual, preconceituosa e muitas vezes a baixa qualidade dos serviços com que as instituições públicas tratam a maioria da população brasileira, especialmete os pobres. 

Muitas dessas leis são observadas apenas por uma visão formalista e não produzem resultados sobre a vida cotidiana punindo as violações previstas tal como ocorre com a lei 7.716/89 que criminaliza o racismo e conhecida como lei Caó. Vale notar que na época de sua discussão durante a Constituinte de 1988 a oposição à lei argumentava que o país não era racista.

O tipo de racismo praticado no Brasil pode ser conferido como na pesquisa interna junto aos alunos do Cefet-RJ e que confirma uma outra feita pela Folha de São Paulo que resultou no livro "Racismo Cordial"* que constata ser o Brasil um país racista ao mesmo tempo que sua população nega praticar individualmente o racismo.


Livros citados, clique para comparar preços:
*Relativizando: Uma Introdução a Antropologia Social
*Racismo Cordial

6 de jun. de 2008

Campanha:120 cartas sobre o racismo

Campanha Cultural:120 anos de Abolição

A campanha "Racismo: se você não fala, quem vai falar?" visa recolher opiniões e depoimentos sobre a experiência pessoal com o racismo. Mais de 1.100 cartas já foram enviada e 120 delas serão publicadas num volume pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
Veja mais informações e leia as cartas enviadas, aqui.

Neab-Cefet: Seminário de lançamento

13 de maio de 2008 foi a data escolhida para a criação do Neab - Núcleo de Estudos Afrobrasileiros do Cefet - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow do Rio de Janeiro. Veja aqui, fotos e programação.

Dessa forma, o Cefet-RJ passa a integrar uma rede de Neabs capacitados e destinados a realizar e promover estudos acadêmicos vinculados aos estudos afro-brasileiros e africanos e à educação para as relações étnicos-raciais.
O Neab-Cefet/RJ é coordenado pelo Prof.: Roberto Borges: borgesrcs@terra.com.br
Em que pese um simbolismo questionável pela alusão ao 13 de maio, aí também pode residir um marco para o desafio de se fazer numa instituição federal de ensino aquilo que o Estado negou-se a fazer em 1888 e durante a maior parte do século XX: preparar a sociedade brasileira para a equidade nas relações étnicas-raciais.

Encerrou-se em 28 de maio o edital UNIAFRO que concede financiamento para as ações para a formação inicial e contibnuada de professores do ensino básico e criação de material didático visando a implementação da lei 10.639.
Veja o último edital clicando na imagem: