10 de out. de 2008

Visibilidade indígena

Índia Bororo - Mato Grosso

A LEI 11.645/08 E A SÓCIO-DIVERSIDADE NATIVA


                                                                                                    Marco José dos Santos Matos[1]

 

A finalidade deste texto é discutir, dentro de uma perspectiva histórico-antropológica, o cenário atual dos povos indígenas no Brasil e os limites e as possibilidades de construção, por meio da educação, de uma cultura de respeito à diversidade sócio-cultural nativa contemporânea, no contexto de implantação da lei 11.645 de 2008.  A opção por enfocar apenas a questão indígena, numa legislação que se refere à inclusão de conteúdos de história e cultura dos grupos indígenas e africanos, justifica-se por ser este o único aspecto que garante certo ineditismo em tal legislação, que repete o texto da lei 10.639 de 2003, que determina as questões sobre africanidade nos currículos escolares. Estas reflexões representam o resultado das experiências de formação continuada de professores através do Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica do pólo de Cáceres no estado de Mato Grosso.

A discussão acerca da questão indígena em Mato Grosso justifica-se pelo fato do estado ser o terceiro do país em número de populações indígenas, antecedido apenas pelo Amazonas e pelo Mato Grosso do Sul e apresentar um rico universo sócio-cultural nativo composto de 34 etnias distintas em suas línguas, em seus costumes, em suas histórias de contato e em suas relações com a natureza. Parte das diferentes etnias apresenta contato direto e permanente com uma considerável parcela da sociedade mato-grossense, podendo ser encontrados nos noticiários, nas escolas ou nas ruas. Porém a intensa convivência entre indígenas e não-indígenas no estado não tem sido sinônimo de visibilidade para os primeiros, descortinando uma dinâmica cruel de aproximação e afastamento simultâneo: ao passo que quanto mais próximos estamos destes grupos menos os percebemos e conhecemos a respeito deles.

Os povos indígenas estão localizados atualmente em praticamente todo o território brasileiro, com exceção dos estados do Piauí e do Rio Grande do Norte. Mas para FERNANDES (1993) os índios são praticamente invisíveis para a sociedade nacional, no sentido de existir um verdadeiro fosso de desconhecimento que separa os índios dos demais segmentos da sociedade brasileira.

Em função de uma política de dominação veiculam-se imagens distorcidas sobre o índio. Não há interesse em se conhecer a realidade indígena, seus costumes, sua sabedoria, na medida em que esse conhecimento poderia colocar em cheque toda a ‘civilização’ dos brancos. (FERNANDES, 1993: 15).

 

A invisibilidade dos povos indígenas junto aos demais grupos da sociedade brasileira ocorre também em função do impacto que a experiência com a alteridade pode promover ao desencadear um processo de reformulação do olhar sobre si mesmo. Isto ocorre porque quando entramos em contato com uma cultura diferente da nossa, antes mesmo de esboçarmos reações de respeito ou de intolerância, percebemos que características em nós que considerávamos “naturais” e tidas como “universais”, são verdadeiramente manifestações de nossa dinâmica histórica e cultural.

Segundo dados da Fundação Nacional do Índio de 2006 os povos indígenas do país apresentam uma população estimada entre 450 e 460 mil indivíduos, que somados representam um universo de 0,04 % do total da população do país e encontrando-se organizados em aproximadamente 216 sociedades diferentes culturalmente entre si e vivenciando experiências bem distintas de contatos e de interação com a sociedade envolvente e com o meio:

 

Cada sociedade apresenta uma configuração particular de costumes, crenças e línguas, uma modalidade específica de adaptação a diferentes ecossistemas, uma história distinta de relacionamento com o empreendimento colonial português e com o processo de constituição do Estado Nacional brasileiro e, portanto, insere-se de modos distintos numa sociedade que se pretende nacional (BARRETO FILHO, 1996:16)

 

 

Essa grande diversidade cultural presente entre as comunidades indígenas em todo o continente americano hoje dá uma pequena mostra da riqueza de línguas, técnicas e crenças encontradas pelos primeiros colonizadores entre os séculos XV e XVI. As estimativas populacionais apontam para dados que “variam de 1 a 8,5 milhões de habitantes para as terras baixas da América do Sul” (CUNHA, 1992). Somente nas terras que viriam a ser o Brasil atual, no contexto da chegada dos primeiros colonizadores europeus, “estima-se que um milhão de índios viviam no litoral e outro milhão às margens do Amazonas” (FAUSTO, 2000), falantes de mais de 1300 línguas (MONTE, 2000).

Os povos indígenas mesmo apresentando hoje uma demografia bem inferior ao período pré-colonial, pois são apenas 5 % do total populacional das terras baixas da América do Sul até o século XV, encontram-se em processo de crescimento, pois tiveram uma população bem mais reduzida entre os anos 60 e 70, quando foram estimados em apenas 150 mil indivíduos. Esta violenta depopulação das sociedades indígenas na segunda metade do século 20 ocorreu em função dos investimentos em infra-estrutura por parte dos governos militares, que através da abertura de estradas e construção de usinas e barragens forçavam contato com grupos isolados e realocavam grupos contatados, levando doenças, assassinatos e desorganização social (VALADÃO, 1991). A recuperação demográfica ocorreu em função de diferentes fatores, como a mobilização das organizações indígenas e indigenistas, a demarcação de terras e o ressurgimento de etnias consideradas extintas, e tem imposto à sociedade brasileira o desafio de construir práticas dialógicas entre as culturas.

 Nesse contexto ganha vulto a proposta de construção de uma cultura de tolerância entre os povos e valorização das diferenças culturais, onde a educação é reconhecida como uma das instâncias formadoras da cidadania, na medida em que enfrenta a discussão da diversidade cultural presente na escola. Esta reflexão tem impacto na luta pelo reconhecimento e respeito às práticas sócio-culturais dos grupos étnicos, colocando para a educação o desafio de (re) pensar sua ação educativa. Segundo PARO educação é “a apropriação do saber, no sentido que não se reduz à informação, porque se reporta a toda essa cultura acumulada” e “pela educação a humanidade pode apropriar-se de toda a produção cultural das gerações anteriores e capacitar-se a prosseguir em seu desenvolvimento histórico”. (2001:50 e 51).

A escola é, nas palavras de BANDEIRA, uma “instituição da cultura para transmissão da cultura” (1995: 28), onde os alunos realizam a transposição dos elementos conceituais apreendidos para a sua prática social. Para a maioria da população é na escola que se constroem as primeiras imagens sobre os povos indígenas, pois após essa fase de escolarização poucas são as pessoas que tem acesso e condições de aprofundarem seus conhecimentos sobre os povos indígenas e sobre as diferenças como um todo.

A experiência com formação continuada de professores permitiu perceber a existência de verdadeiros caminhos paralelos entre os saberes praticados nas escolas e as recentes pesquisas em Antropologia e História, despertando para a importância de refletir sobre a implantação da lei 11.645/2008, que determina a inclusão de conteúdos sobre a história e as culturas indígenas e africanas no currículo dos estabelecimentos de ensino públicos ou privados de educação básica no país:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.   (Art. 26 – A, § 1º)

 

A lei de março de 2008 está longe de representar algum consenso entre os movimentos sociais afro-ameríndios do país. Os representantes destes movimentos questionam acerca da viabilidade de uma legislação que tenta beneficiar dois grupos que se encontram em contextos de enfrentamento político bem distintos, pois se por um lado temos uma trajetória de cinco anos de divulgação da lei 10.639/03 por parte de movimento negro e de alguns órgãos oficiais, por outro temos o início de uma tentativa de construção da visibilidade dos povos indígenas nos currículos escolares. De certa forma a legislação confunde a população em relação ao árduo trabalho de divulgação da lei 10.639/03, podendo ainda diluir as especificidades que requer o tratamento da questão indígena na escola.

O enfrentamento da problemática das alteridades humanas na sala de aula deve constituir-se como umas das preocupações centrais dos professores e da escola como um todo, pois o silêncio, por vezes covarde, em relação às manifestações de dificuldade de convivência com a diversidade, presentes no universo escolar, tem sido um dos principais motores que proporcionam a permanência de práticas de intolerância contra grupos sociais minoritários no país ao longo de seu processo histórico.

Este mesmo silenciamento também é encontrado quando se trata da questão indígena, um silêncio que tem início na própria falta de (re) conhecimento por parte da escola em relação a composição de sua sócio-diversidade nativa e perpassa por um currículo escolar que distancia o saber dos alunos da história e da cultura dos povos indígenas, resultando em relações interculturais marcadas por posturas verticalizadas frente a diferença, além das manifestações de intolerância e violência (nas suas variadas formas) presentes no cotidiano escolar. As dores produzidas por estas práticas geralmente encontram eco no silenciamento escolar.

Desta forma, as discussões sobre as origens do silêncio excludente da escola em relação aos povos indígenas devem voltar-se tanto para a formação inicial e continuada de professores quanto para condições estruturais para a viabilização de nossa prática pedagógica, mas devem, acima de tudo, fazer parte de uma reflexão constante, por parte dos profissionais envolvidos, a respeito dos valores e pensamentos presentes em nossos conteúdos programáticos e de nossa própria postura diante das diversidades em suas variadas nuances, tendo sempre em vista um dos maiores objetivos da educação: a ampliação dos universos culturais. 

 

Referências Bibliográficas:

GRUPIONI, Luis Donisete Benzi, VIDAL, Lux & FISCHMANN, Roseli (Orgs.). Povos indígenas e tolerância. São Paulo: ed USP, 2001.

BANDEIRA Maria de Lurdes: Antropologia no quadro das ciências Sociais. Vol.01 Cuiabá: UFMT/NEAD, 1995.

BANDEIRA Maria de Lurdes: Antropologia no quadro das ciências Sociais. Vol.01 Cuiabá: UFMT/NEAD, 1995.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1997.

MONTE, Nieta Lindenberg. Praticas e Direitos: as línguas indígenas no Brasil.In: QUEIXALÓS, F. & RENALT-LESCURE, O. As línguas amazônicas hoje.São Paulo: I.S.A., 2000.

CUNHA, Manuela Carneira. ‘O futuro da questão indígena’. In SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luis Donisete Benzi (Orgs) A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus.São Paulo: Global; Brasília: MEC: MARI: UNESCO, 2000.

PARO, Victor Henrique. Escritos sobre educação. São Paulo: Xamã, 2001.

BARRETO FILHO, Henyo Trindade. Sociedades Indígenas: Diversidade Cultural Contemporânea no Brasil. Brasília: FUNAI/ CEDUC, 1996.

FAUSTO Carlos. ‘Historia’. In: Índios no Brasil. Brasília: MEC/ SEED/ SEF, 2001.

AZANHA, Gilberto & VALADÃO, Virgínia Marcos. Senhores destas terras – os povos indígenas no Brasil: da colônia aos nossos dias. Coleção História em documentos. São Paulo: Atual, 1991.


[1] Professor Formador do Cefapro de Cáceres, licenciado em História e especialista em Educação Escolar Indígena pela Unemat.

Publicado originalmente em: http://escola.seduc.mt.gov.br/cefaprocaceres/index.php?option=com_content&task=view&id=146&Itemid=46
Fotos: Quinhones/Aquidauananews

20 de ago. de 2008

Lei 11.645: reinvenção da fábula das três raças? (5)

Esta postagem é a última parte do resumo do texto de Roberto Da Matta, posteriormente, em conclusão, discutirei se a Lei 11.645 conduz a reinvenção da "fábula das três raças".

Da Matta aponta que a originalidade do modelo racial brasileiro foi dada pelo sistema escravista português que era apoiado "numa sociedade altamente herarquizada onde as pessoas se ligam entre si e essas ligações são consideradas fundamentais". Estas relações valiam não só mais que as leis mas determinavam que as próprias "relações entre senhores e escravos podia se realizar com muito mais intimidade , confiança e consideração".
O negro neste sistema é assim visto como um complemento natural do branco que se dedica ao trabalho duro. Este mundo construído pelo escravocrata português era hierarquizado segundo os cânones da Igreja Católica onde as esferas e os planos estão distribuídos como na oração ... assim na terra como no céu.
Segue esta visão, o modelo onde 'cada coisa tem seu lugar', onde a intimidade, a consideração, o favor, a confiança, podem ser vistos como traços e valores associados à hierarquia que emoldura a sociedade:
"neste sistema não há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do branco como grupo dominante".

Da Matta compara o racismo brasileiro com suas características intermediárias associadas à mestiçagem ao sistema de camadas das sociedades de castas da Índia, onde elas existem como complementares da casta superior. No Brasil ausência da segregação se deve aos valores acima referidos que mantém as relações hierárquicas associadas ao trato pessoal e em oposição o que vai resultar "na ausência de valores igualitários."

Comparando o sistema racial brasileiro com o dos EUA onde vigoram os valores igualitários e individualistas o elemento que o diferencia é a admissão e o elogio da mestiçagem feita aqui. Na Europa e EUA o "mestiço" era visto como indesejável pelo sistema de relações raciais onde o foco das teorias racistas especulavam sobre a inferioridade básica do "mestiço" como um elemento híbrido, dotado de todas as qualidades negativas daquilo que chamavam de "sub-raças".
Ainda que para o racismo arianista o mal não está na diferenças entre as raças, mas nas "suas relações", este é o ponto-chave e o que nos EUA fez do mulatto um ser desprezível, "a ponto de não ter uma posição socialmente reconhecida, posto que é classificado como "negro".
O problema social criado com o fim da escravidão às custas da guerra civil americana formou a questão: "como encontrar lugar para ex-escravos competindo com brancos pobres, sobretudo, num Sul derrotado? Em outras palavras, como encontrar lugar para negros ex-escravos, num sistema que situava (e ainda situa) o indivíduo e a igualdade como a principal razão de sua existência?"
Na forma da segregação fundada em leis como um modo concreto e coerente de uma sociedade individualista resolver o problema da desigualdade e da sua manutenção num sistema onde o credo igualitário tem uma importância social fundamental.

No Brasil, assegura Da Matta, ao contrário, do que Gilberto Freire entre outros afirmam (ou gostariam que fosse) a mestiçagem não é "uma característica cultural portuguesa, senão um modo de enfrentar os dilemas do trabalho escravo num sistema altamente hiierarquizado, onde cada homem tem o seu lugar determinado e onde a igualdade não existe.
Assim, "no Brasil a preocupação e a consequente teorização foi realizada sobre o mestiço e mulato como um tipo intermediário e ambíguo e ao mesmo tempo sugerindo uma espécie de encontro carnal "harmonioso" entre as raças branca e negra, e podemos acrescentar, assim como o caboclo representava este "encontro" entre o branco e o índio.

Para doutrinadores racistas brasileiros, ainda que admitissem a "superioridade ariana" eles não deixavam de considerar esta espécie de harmonia triangular formada entre as raças, de modo que ela irá criar uma ideologia abrangente e hierarquizada desde sua formulação. Foi este esquema que Da Matta apontou ter sido bem revelado por Oracy Nogueira identificando o racismo norte-americano como de "origem" e o brasileiro como de "marca". Ou seja, nos EUA qualquer gota de sangue negro determina a origem do indivíduo, enquanto no sistema brasileiro são admitidas as gradações dada pelas mestiçagem.

Atentemos que no Brasil o ponto-chave do sistema racial são as gradações e nuanças da mestiçagem: cor da pele, tipo de cabelo, dos lábios, etc. que contudo, não se tornam elementos exclusivos na classificação social da pessoa. Vigoram ainda, outros critérios que podem realçar ou não essa classificação como "o dinheiro e o poder permitem classificar um preto como mulato ou até mesmo como branco" consagrando-se assim um sistema variável de classificação racial.

Estes "tipos de preconceito racial" compõe as ideologias dominantes e se apresentam como as formas escolhidas historicamente por estas sociedades e que formam um "esquema coerente e abrangente" com suas diferenças e hierarquias formando uma totalidade bastante integrada. É esta forma de racismo que permite "até hoje discutir e perceber a acentuada miséria de "negros" e "índios" sem perceber suas diferenciações específicas e, sobretudo, sem colocar em risco a posição de superioridade política e social dos "brancos"".

Para que este "sistema racial" funcione é preciso que seu credo ideológico perdure através de mecanismos de reprodução como a mestiçagem, o sincretismo, a política do apadrinhamento e do favor, etc. que se tornaram mediações para se evitar o conflito e o confronto racial. E que formam um sistema abrangente fundado na hierarquia e baseado na lógica de que "há um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar" que faz parte da herança portuguesa e que nunca foi abalado pelas transformações sociais ocorridas no país e sendo transformado num sistema internalizado que passa despercebido, observa Da Matta.