Esta postagem é a última parte do resumo do texto de Roberto Da Matta, posteriormente, em conclusão, discutirei se a Lei 11.645 conduz a reinvenção da "fábula das três raças".
Da Matta aponta que a originalidade do modelo racial brasileiro foi dada pelo sistema escravista português que era apoiado "numa sociedade altamente herarquizada onde as pessoas se ligam entre si e essas ligações são consideradas fundamentais". Estas relações valiam não só mais que as leis mas determinavam que as próprias "relações entre senhores e escravos podia se realizar com muito mais intimidade , confiança e consideração".
O negro neste sistema é assim visto como um complemento natural do branco que se dedica ao trabalho duro. Este mundo construído pelo escravocrata português era hierarquizado segundo os cânones da Igreja Católica onde as esferas e os planos estão distribuídos como na oração ... assim na terra como no céu.
Segue esta visão, o modelo onde 'cada coisa tem seu lugar', onde a intimidade, a consideração, o favor, a confiança, podem ser vistos como traços e valores associados à hierarquia que emoldura a sociedade: "neste sistema não há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do branco como grupo dominante".
Da Matta compara o racismo brasileiro com suas características intermediárias associadas à mestiçagem ao sistema de camadas das sociedades de castas da Índia, onde elas existem como complementares da casta superior. No Brasil ausência da segregação se deve aos valores acima referidos que mantém as relações hierárquicas associadas ao trato pessoal e em oposição o que vai resultar "na ausência de valores igualitários."
Comparando o sistema racial brasileiro com o dos EUA onde vigoram os valores igualitários e individualistas o elemento que o diferencia é a admissão e o elogio da mestiçagem feita aqui. Na Europa e EUA o "mestiço" era visto como indesejável pelo sistema de relações raciais onde o foco das teorias racistas especulavam sobre a inferioridade básica do "mestiço" como um elemento híbrido, dotado de todas as qualidades negativas daquilo que chamavam de "sub-raças".
Ainda que para o racismo arianista o mal não está na diferenças entre as raças, mas nas "suas relações", este é o ponto-chave e o que nos EUA fez do mulatto um ser desprezível, "a ponto de não ter uma posição socialmente reconhecida, posto que é classificado como "negro".
O problema social criado com o fim da escravidão às custas da guerra civil americana formou a questão: "como encontrar lugar para ex-escravos competindo com brancos pobres, sobretudo, num Sul derrotado? Em outras palavras, como encontrar lugar para negros ex-escravos, num sistema que situava (e ainda situa) o indivíduo e a igualdade como a principal razão de sua existência?"
Na forma da segregação fundada em leis como um modo concreto e coerente de uma sociedade individualista resolver o problema da desigualdade e da sua manutenção num sistema onde o credo igualitário tem uma importância social fundamental.
No Brasil, assegura Da Matta, ao contrário, do que Gilberto Freire entre outros afirmam (ou gostariam que fosse) a mestiçagem não é "uma característica cultural portuguesa, senão um modo de enfrentar os dilemas do trabalho escravo num sistema altamente hiierarquizado, onde cada homem tem o seu lugar determinado e onde a igualdade não existe. Assim, "no Brasil a preocupação e a consequente teorização foi realizada sobre o mestiço e mulato como um tipo intermediário e ambíguo e ao mesmo tempo sugerindo uma espécie de encontro carnal "harmonioso" entre as raças branca e negra, e podemos acrescentar, assim como o caboclo representava este "encontro" entre o branco e o índio.
Para doutrinadores racistas brasileiros, ainda que admitissem a "superioridade ariana" eles não deixavam de considerar esta espécie de harmonia triangular formada entre as raças, de modo que ela irá criar uma ideologia abrangente e hierarquizada desde sua formulação. Foi este esquema que Da Matta apontou ter sido bem revelado por Oracy Nogueira identificando o racismo norte-americano como de "origem" e o brasileiro como de "marca". Ou seja, nos EUA qualquer gota de sangue negro determina a origem do indivíduo, enquanto no sistema brasileiro são admitidas as gradações dada pelas mestiçagem.
Atentemos que no Brasil o ponto-chave do sistema racial são as gradações e nuanças da mestiçagem: cor da pele, tipo de cabelo, dos lábios, etc. que contudo, não se tornam elementos exclusivos na classificação social da pessoa. Vigoram ainda, outros critérios que podem realçar ou não essa classificação como "o dinheiro e o poder permitem classificar um preto como mulato ou até mesmo como branco" consagrando-se assim um sistema variável de classificação racial.
Estes "tipos de preconceito racial" compõe as ideologias dominantes e se apresentam como as formas escolhidas historicamente por estas sociedades e que formam um "esquema coerente e abrangente" com suas diferenças e hierarquias formando uma totalidade bastante integrada. É esta forma de racismo que permite "até hoje discutir e perceber a acentuada miséria de "negros" e "índios" sem perceber suas diferenciações específicas e, sobretudo, sem colocar em risco a posição de superioridade política e social dos "brancos"".
Para que este "sistema racial" funcione é preciso que seu credo ideológico perdure através de mecanismos de reprodução como a mestiçagem, o sincretismo, a política do apadrinhamento e do favor, etc. que se tornaram mediações para se evitar o conflito e o confronto racial. E que formam um sistema abrangente fundado na hierarquia e baseado na lógica de que "há um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar" que faz parte da herança portuguesa e que nunca foi abalado pelas transformações sociais ocorridas no país e sendo transformado num sistema internalizado que passa despercebido, observa Da Matta.
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