20 de ago. de 2008

Lei 11.645: reinvenção da fábula das três raças? (5)

Esta postagem é a última parte do resumo do texto de Roberto Da Matta, posteriormente, em conclusão, discutirei se a Lei 11.645 conduz a reinvenção da "fábula das três raças".

Da Matta aponta que a originalidade do modelo racial brasileiro foi dada pelo sistema escravista português que era apoiado "numa sociedade altamente herarquizada onde as pessoas se ligam entre si e essas ligações são consideradas fundamentais". Estas relações valiam não só mais que as leis mas determinavam que as próprias "relações entre senhores e escravos podia se realizar com muito mais intimidade , confiança e consideração".
O negro neste sistema é assim visto como um complemento natural do branco que se dedica ao trabalho duro. Este mundo construído pelo escravocrata português era hierarquizado segundo os cânones da Igreja Católica onde as esferas e os planos estão distribuídos como na oração ... assim na terra como no céu.
Segue esta visão, o modelo onde 'cada coisa tem seu lugar', onde a intimidade, a consideração, o favor, a confiança, podem ser vistos como traços e valores associados à hierarquia que emoldura a sociedade:
"neste sistema não há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do branco como grupo dominante".

Da Matta compara o racismo brasileiro com suas características intermediárias associadas à mestiçagem ao sistema de camadas das sociedades de castas da Índia, onde elas existem como complementares da casta superior. No Brasil ausência da segregação se deve aos valores acima referidos que mantém as relações hierárquicas associadas ao trato pessoal e em oposição o que vai resultar "na ausência de valores igualitários."

Comparando o sistema racial brasileiro com o dos EUA onde vigoram os valores igualitários e individualistas o elemento que o diferencia é a admissão e o elogio da mestiçagem feita aqui. Na Europa e EUA o "mestiço" era visto como indesejável pelo sistema de relações raciais onde o foco das teorias racistas especulavam sobre a inferioridade básica do "mestiço" como um elemento híbrido, dotado de todas as qualidades negativas daquilo que chamavam de "sub-raças".
Ainda que para o racismo arianista o mal não está na diferenças entre as raças, mas nas "suas relações", este é o ponto-chave e o que nos EUA fez do mulatto um ser desprezível, "a ponto de não ter uma posição socialmente reconhecida, posto que é classificado como "negro".
O problema social criado com o fim da escravidão às custas da guerra civil americana formou a questão: "como encontrar lugar para ex-escravos competindo com brancos pobres, sobretudo, num Sul derrotado? Em outras palavras, como encontrar lugar para negros ex-escravos, num sistema que situava (e ainda situa) o indivíduo e a igualdade como a principal razão de sua existência?"
Na forma da segregação fundada em leis como um modo concreto e coerente de uma sociedade individualista resolver o problema da desigualdade e da sua manutenção num sistema onde o credo igualitário tem uma importância social fundamental.

No Brasil, assegura Da Matta, ao contrário, do que Gilberto Freire entre outros afirmam (ou gostariam que fosse) a mestiçagem não é "uma característica cultural portuguesa, senão um modo de enfrentar os dilemas do trabalho escravo num sistema altamente hiierarquizado, onde cada homem tem o seu lugar determinado e onde a igualdade não existe.
Assim, "no Brasil a preocupação e a consequente teorização foi realizada sobre o mestiço e mulato como um tipo intermediário e ambíguo e ao mesmo tempo sugerindo uma espécie de encontro carnal "harmonioso" entre as raças branca e negra, e podemos acrescentar, assim como o caboclo representava este "encontro" entre o branco e o índio.

Para doutrinadores racistas brasileiros, ainda que admitissem a "superioridade ariana" eles não deixavam de considerar esta espécie de harmonia triangular formada entre as raças, de modo que ela irá criar uma ideologia abrangente e hierarquizada desde sua formulação. Foi este esquema que Da Matta apontou ter sido bem revelado por Oracy Nogueira identificando o racismo norte-americano como de "origem" e o brasileiro como de "marca". Ou seja, nos EUA qualquer gota de sangue negro determina a origem do indivíduo, enquanto no sistema brasileiro são admitidas as gradações dada pelas mestiçagem.

Atentemos que no Brasil o ponto-chave do sistema racial são as gradações e nuanças da mestiçagem: cor da pele, tipo de cabelo, dos lábios, etc. que contudo, não se tornam elementos exclusivos na classificação social da pessoa. Vigoram ainda, outros critérios que podem realçar ou não essa classificação como "o dinheiro e o poder permitem classificar um preto como mulato ou até mesmo como branco" consagrando-se assim um sistema variável de classificação racial.

Estes "tipos de preconceito racial" compõe as ideologias dominantes e se apresentam como as formas escolhidas historicamente por estas sociedades e que formam um "esquema coerente e abrangente" com suas diferenças e hierarquias formando uma totalidade bastante integrada. É esta forma de racismo que permite "até hoje discutir e perceber a acentuada miséria de "negros" e "índios" sem perceber suas diferenciações específicas e, sobretudo, sem colocar em risco a posição de superioridade política e social dos "brancos"".

Para que este "sistema racial" funcione é preciso que seu credo ideológico perdure através de mecanismos de reprodução como a mestiçagem, o sincretismo, a política do apadrinhamento e do favor, etc. que se tornaram mediações para se evitar o conflito e o confronto racial. E que formam um sistema abrangente fundado na hierarquia e baseado na lógica de que "há um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar" que faz parte da herança portuguesa e que nunca foi abalado pelas transformações sociais ocorridas no país e sendo transformado num sistema internalizado que passa despercebido, observa Da Matta.

7 de ago. de 2008

Lei 11.645: reinvenção da fábula das três raças? (4)

Esta postagens faz parte um resumo que venho publicando em partes de um artigo do antropólogo Roberto Da Matta, A fábula das três raças publicado no livro Relativizando editado pela Vozes.

Lembra o autor que o "racismo" nasce no século XVIII na França pré-insurgente da Revolução Francesa em que a nobreza ameaçada cria uma doutrina política para tentar se manter no poder narrando uma origem heróica para o povo e na qual seria por ela conduzido para um destino glorioso e para isto se atribuia uma origem quase divina por sua origem de nascimento.

No século XIX esta doutrina ressurge com nova roupagem como um "instrumento do imperialismo e como uma justificativa "natural" para a supremacia dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo". Ela agora envolvia as novas teorias evoluciostas que eram vistas como científicas dando assim ares de verdade ao racismo. Foram nestas teorias que as elites brasileiras se apoiaram e sobretudo na tese defendida pelo francês Conde de Gobineau que nomeado por Napoleão III tornou-se embaixador da França no Brasil.

Vários daqueles teóricos racistas europeus e norte-americanos em suas referências ao Brasil alertavam para um "futuro altamente duvidoso" ocasionado pelas "junções raciais entre negros, brancos e índios" que eles condenavam.

Gobineau defendia a tese de que "a sociedade brasileira era inviável porque possuia uma enorme população "mestiça", fruto do "cruzamento de raças diferentes". Também, o zoólogo suiço, Louis Agassiz declarou em visita ao Brasil que a "deterioração decorrente do amálgama de raças (...) vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido deficiente em energia física e mental".

Nas teorias racistas prevalecem o determinismo em que as "diferenciações biológicas são vistas como tipos acabados e que cada tipo está determinado em seu comportamento e mentalidade pelos fatores intrínsicos ao seu componente biológico".

A publicação em 1855 pelo Conde de Gobineau do livro "A Diversidade Moral e Intelectual das Raças" apresentava uma escala que colocava no topo a raça branca, secundado pela raça amarela e por fim a raça negra. Esta escala se baseava nas características de a) "intelecto"; b) "propensões animais" e c) "manifestações morais". 
Este esquema racial de Gobineau seguia um "código natural" que traçaria características imutáveis pela origem biológica de cada ser humano o que formaria uma "perfeita equação entre traços biológicos, psicológicos e posição histórica". Para Gobineau, "as civilizações decaíam, arruinavam-se, eram conquistadas e se desenvolviam ou desapareciam porque sua "história racial" conduzia a misturas infelizes dos traços contidos em cada unidade racial, por isso, ele manifestava uma preocupação com o destino da raça branca no Brasil que aqui estaria perdendo suas qualidades.

Este esquema que oferecia uma visão "totalizada e acabada" da realidade serviu de moldura para uma "percepção empírica da história da sociedade brasileira que se encontrava concretamente dividida em segmentos, cujo poder e prestígio diferencial e hierarquizado correspondia, grosso modo, aos diferentes tipos físicos e origens sociais".

Para Da Matta, a teoria racista de Gobineau inaugura não só uma reflexão sobre a dinâmica das raças como abre a discussão sobre as dinâmicas sociais servindo ainda para as especulações sobre os "resultados dso cruzamentos raciais" ao qual vão se somar " fatores mais profundos relacionados a formação social, cultural e histórica do Brasil" levando a "adoção e permanência do racismo como ideologia e tema de reflexão científica no país".