8 de jul. de 2008

Lei 11.645: reinvenção da fábula das três raças? (3)

Prosseguindo o resumo do texto de Roberto da Matta: "A Fábula da Três Raças ou o Problema do Racismo à Brasileira" encontrado em "Relativizando: Uma Introdução a Antropologia Social" da Editora Vozes.


"A primeira missa no Brasil" pintura de Victor Meireles de 1861

Portugal iniciou sua ação colonizadora marcado pela união dos interesses entre a Coroa e a Igreja que vai lhes oferecer uma espécie de mandato divino para realizar e legitimar seu expansionismo mercantil, a escravidão, o tráfico de escravos e a exploração das terras conquistadas e colaborar com a sua administração através da catequização dos povos subjulgados.

Portugal se apresenta como uma sociedade singular com um sistema de hierarquias tradicionais em que prevalece o poder unicamente representados pela Coroa e o Rei, a Igreja e o Papa. Desse modo, os comerciantes não atuam como uma classe social com interesses próprios e sim, como uma categoria complementar à Coroa dando forma a figura do aristocrata-comerciante ou do fidalgo-burguês.
E onde a presença de mouros e judeus está marcada por um forte controle social e político que envolve formas de segregação.

A Coroa portuguesa procura tansplantar para as terras conquistadas seu sistema jurídico e social que se apresenta como um "todo social altamente hierarquizado e apoiado numa economia moderna que opera em escala mundial, mas que suas instituições concomitantes não são compostas por uma burguesia comercial com individualidade e interesses próprios". Ao contrário, era uma sociedade "controlada por leis e decretos que rigidamente impediam que o "econômico" se estabelecesse como atividade dominante".

Diferente do que ocorreu com a colonização inglêsa nos EUA onde as companhias aprticulares desenvolvem as atividades produtivas com leis próprias e parcialmente independentes da Coroa britânica.

Estas são em resumo, os diferenciais apontado por Da Matta sobre a colonização portuguesa que se não permitem demarcar com precisão as origens do credo racial no Brasil, contribuem para começar a enxergar seu caráter profundamente hierarquizado e que se mostrará específico e único como veremos.

O movimento pela Indepenência lembra o autor, foi uma obra dos estratos dominantes e não um movimento da baixo para cima, não teve portanto, o mérito de ser uma alvanca para transformações sociais profundas. No entanto, "ela foi básica na medida em que apresentou à elite nacional e local a necessidade de criar suas próprias ideologias e mecanismos de racionalização para as diferenças internas do país".

Onde buscar, como formar tal ideologia e como preparar os seus mecanismos de controle social? Aponta o autor que a "fábula das três raças" e o que vai se formando como o "racismo à brasileira" permitem promover uma conciliação das contradições sociais sem ter que se constituir num plano para a sua transformação. Sua gestação se deu no período subsequente a Independência e culminou com a crise que se formava com o Abolicionismo e o movimento republicano.

A força de um estatuto "científico" das raças foi decisivo para respaldar as desigualdades sociais vigentes que a invenção da "fábula das três raças" permitia tanto naturalizar como demarcá-lo historicamente. E assim, promover o que resultou no original "racismo à brasileira" já que com esta ideologia poderiam ser mantidas as cadeias de relações sociais dadas pelo patriarcalismo  acomodando as desigualdades sociais vigentes.

A "fábula das três raças" se constitui na mais poderosa força cultural do Brasil, afirma Da Matta, permitiu pensar o país, integrar idealmente sua sociedade e individualizar sua cultura com a força e o estatuto de uma id
eologia dominante que interpenetra a maioria dos domínios explicativos da cultura. O mito das três raças, "fornece as bases de um projeto político e social (que não se realiza) mas que tem na tese do branqueamento um alvo a ser buscado".

Assim, o mito das três raças "une num plano "biológico" e "natural" harmonioso aquilo que "é rasgado por hierarquizações e motivações conflituosas" ou seja, as divisões sociais e políticas. É tão poderoso que se prolonga nas expressões culturais, simbólicas e religiosas como a Umbanda, o samba, o carnaval, a cordialidade, a culinária, a música e a "mulata".

24 de jun. de 2008

Desconstruindo o racismo: a polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista













A "polêmica musical" entre Noel Rosa e Wilson Batista ocorrida na década de 1930 é um ótimo caso para uma atividade pedagógica de conscientização das relações raciais no Brasil.
Observada em seu contexto a polêmica é uma espécie de representação do conflito entre dois mundos que se opõem e se complementam numa época em que todas as energias da sociedade estão em ebulição.
É o período do Estado Novo nos anos 30 em que o país se encontra em acelerada urbanização e industrialização e as relações entre negros e brancos ganham novos contornos.

Noel Rosa e Wison Batista tem em comum o gosto pelo samba, a musicalidade e o talento, além de viverem cada um a seu modo, o "mundo do samba". É um período em que o sambista já não corre tanto da polícia e há um forte sentimento nacionalista no ar. Mas, especialmente para o negro é um ambiente perigoso, onde ele é visto como ameaça e que para ter sua identidade respeitada é preciso negociá-la, seja na malandragem, seja na valentia.

Foi neste cenário que nasceu a rivalidade entre os dois sambista que protagonizam em alto estilo seus papéis de mocinho e vilão neste episódio das relações raciais no Brasil.
De um lado, Wilson Batista representa o malandro, negro, suburbano, pobre e talentoso. Nascido em Campos em 1913 compôs o primeiro samba aos 16 anos, trabalhava nos bastidores do teatro de revista, morava na Lapa e frequentava seus cabarés, era o boêmio pobre.
De outro lado, Noel Rosa representa o boêmio 'boa vida', frequentador do Café Nice onde se reuniam os "doutores" e morador de um bairro tradicional típico de classe média e foi estudante de medicina.
A "rixa" começou depois que Wilson Batista fez um samba exaltando a malandragem, "Lenço no pescoço" (2) e Noel compôs o samba "Rapaz Folgado" (3).
O duelo teve mais alguns sambas provocativos entre os dois e Wilson pouco sutil, apelou para exaltar o defeito físico de Noel, a polêmica terminou, ficaram amigos e gravaram juntos.

Caetano Veloso fez há pouco uma série de três shows chamado "Ordem em Progresso" no Vivo Rio (RJ) num deles conforme consta em sua página: "Caetano dá aula sobre Feitiço da Vila, composição de Noel Rosa: o que sua letra pode nos ensinar sobre as relações raciais/culturais no Brasil?"
Caetano interpreta a letra do samba "Feitiço da Vila" dando ênfase em algumas palavras e versos, faz insinuações e pequenos comentários que revelam alguns significados racistas na resposta de Noel Rosa a Wilson Batista.
A descontrução do racismo está exemplificada na "aula" de Caetano que oferece um excelente material de referência para que possamos fazer uma análise das relações raciais no Brasil, observando o seu contexto histórico, social e cultural o que atende a demanda por referências para o cumprimento da lei 11.645/08.

Veja o vídeo:


Feitiço da Vila De: Noel Rosa e Vadico

Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos,
Do arvoredo e faz a lua,
Nascer mais cedo.

Lá, em Vila Isabel,
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café,
Minas dá leite,
E a Vila Isabel dá samba.

A vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem

Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente

O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora:
"Sol, pelo amor de Deus,
não vem agora
que as morenas
vão logo embora

Eu sei tudo o que faço
sei por onde passo
paixao nao me aniquila
Mas, tenho que dizer,
modéstia à parte,
meus senhores,
Eu sou da Vila!

Lenço no Pescoço Composição: Wílson Batista

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

E eles tocam
E você canta
E eu não dou


Rapaz Folgado De: Noel Rosa

Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha

Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado

Este vídeo oferece um perfil do bairro Vila Isabel.





Agradecimento: Ras Adauto
Fontes consultadas:
Sobre o conceiro de Descontrução (J.Derrida) ver artigo em:
http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/espiral/tecno9.htm
Artigo s/ a Polêmica: Noel Rosa e Wilson Batista
http://www.brasilcultura.com.br/conteudo.php?id=652&menu=92&sub=678
Artigo de Luis Nacif: http://www.acessa.com/gramsci/?id=418&page=visualizar
Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira http://www.dicionariompb.com.br/default.asp